Hoje em dia é possível implantar um aparelho eletrônico no corpo humano para alívio dos sintomas de doenças neurodegenerativas
Foi na primeira metade dos anos 1980 que a literatura e o cinema passaram a contar suas histórias de maneira inédita, passando a influenciar toda uma geração que começava a ser apresentada às possibilidades que a tecnologia oferecia, tanto para o mundo real quanto para o virtual. É neste contexto que o Cyberpunk, um subgênero alternativo da ficção científica, passou a ganhar forma, e ao longo de 40 anos, apresentou notáveis obras, como o filme Matrix e o livro Neuromancer.
Nesta categoria de história, as pessoas são apresentadas das mais variadas formas. Esteticamente podem exibir um braço mecânico, perna de ferro, olho biônico com visão além do alcance, um cérebro artificial com entrada para conectar um chip interligando fios que se conectam com o sistema nervoso central e periférico em uma completa simbiose. Enfim, as possibilidades de personalização do corpo são infinitas dentro deste universo.
Da ficção científica para a realidade
Este tipo de história se passa em um futuro onde a tecnologia chegou a níveis de sofisticação nunca imaginados, porém, nos dias de hoje, o implante de um aparelho eletrônico em um corpo orgânico é uma realidade na área médica.
A Estimulação Cerebral Profunda, do inglês Deep Brain Stimulation (DBS) é um procedimento de estimulação de áreas profundas do cérebro humano, conhecido como gânglios da base, realizado através de um aparelho eletrônico implantado dentro do corpo. Eletrodos são ligados a este aparelho portátil que é movido a bateria e aplica uma corrente elétrica que atravessa o cérebro. A corrente elétrica é muito baixa, suficiente apenas para estimular os neurônios, gerando potencial de ação, o que potencializa os efeitos positivos e provoca uma melhora no alívio de muitos sintomas em doenças, como: Parkinson, distonia e tremor essencial.
Um aparelho conectado ao cérebro ajuda a combater os sintomas do Parkinson
Segundo a Dra. Vanessa Milanese, neurocirurgiã e Diretora de Comunicação da SBN, o DBS é feito através de uma modulação na região do Globo Pálido Interno ou do núcleo subtalâmico, que são as regiões mais escolhidas para modular e controlar os sintomas motores. "A gente faz uma modulação na área motora desses núcleos através de uma frequência alta naquela estimulação, e desta forma conseguimos controlar, tanto o tremor, quanto à rigidez, quanto a lentidão dos movimentos de quem tem Parkinson, isso acaba ajudando muito na qualidade de vida desses pacientes", afirma.
Segundo a especialista, este aparelho eletrónico é feito de uma liga de platina irídio, que é um material leve e que funciona muito bem no cérebro para conduzir o estímulo que o médico está querendo entregar. "Composto por uma uma bainha de poliuretano, um material flexível bastante utilizado, deixa o eletrodo maleável ao ponto de poder ser implantado no cérebro sem causar problemas para o paciente nessa passagem do eletrodo", esclarece.
Tanto o eletrodo implantado quanto uma extensão que passa por trás da orelha do paciente não têm prazo de validade, porém em caso de infecção ou erosão no local é necessário a troca, mas se não existir nenhum problema pode durar para sempre. Com relação ao gerador de pulsos que é implantado na região subclavicular, geralmente localizado no lado direito, tem variação de duração. "Se for um gerador não recarregável pode durar em torno de 4 a 6 anos, variando de acordo com a necessidade de energia oferecida ao paciente. Alguns casos necessitam de uma amplitude muito alta e o gerador acaba durando entre 2 e 3 anos. Existem também geradores recarregáveis que podem durar de 9 a 25 anos dependendo do tipo de gerador e da empresa que comercializa", finaliza a Dra. Vanessa.
Parkinson - A segunda doença neurodegenerativa mais comum
Existe uma frase curta que quando dita suga os sonhos de milhares de pessoas em todo mundo: "Você tem Parkinson". Identificada há mais de 200 anos, em 1817, por James Parkinson, que descreveu os principais sintomas da doença publicando o artigo: Ensaio sobre a Paralisia Agitante, esta patologia está entre as principais doenças neurológicas degenerativas desde então.
O Parkinson deteriora células do sistema nervoso ao longo do tempo e pode provocar mais de 20 sintomas motores, como: tremor, rigidez, dificuldade de marcha, dificuldade de realizar atividades motoras finas (escrever, desenhar, pintar) e mais de 20 sintomas não motores, entre eles: apatia, depressão constipação, dificuldade para dormir, entre outros sinais que causam enormes prejuízos à qualidade de vida de uma pessoa e da sua família.
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), aproximadamente 1% da população mundial com idade superior a 65 anos tem a doença. No Brasil, estima-se que 200 mil pessoas sofram com o problema.
Identificada há mais de 2 séculos, a comunidade médica científica ainda não conseguiu achar uma cura definitiva para esta doença, mas há dezenas de estudos em nível experimental sobre alternativas de tratamento, sendo a Estimulação Cerebral Profunda uma das mais promissoras opções de controle dos sintomas motores da doença.
A neuromodulação pode ser considerada o caminho da cura para doenças neurodegenerativas?
Seria maravilhoso se a neuromodulação conseguisse parar o desenvolvimento da doença ou pelo menos atrasasse o desenvolvimento de novos sintomas que são progressivos, pois trata-se de uma doença degenerativa. Todavia até o momento não existe evidência de que a Estimulação Cerebral Profunda seja a cura no sentido de se restabelecer a normalização fisiológica de uma circuitaria que não está funcionando bem e nem de evitar a progressão da doença de Parkinson.
A neurocirurgiã Dra. Alessandra Gorgulho, Diretora da NeuroSapiens e Coordenadora do Departamento de Radiocirurgia da SBN, esclarece que, ao longo dos anos, o paciente vai lentamente progredindo na sua condição de base e apresenta novos sintomas, inclusive os não-motores. "No entanto, existem alguns pouquíssimos grupos avaliando se o DBS teria algum efeito no sentido de atrasar o desenvolvimento dos novos sintomas. Na prática clínica, onde temos mais de 30 anos de uso do DBS em mais de 180 mil pacientes implantados no mundo, vemos que os pacientes continuam a evoluir a doença de Parkinson", comenta.
O que os neurocirurgiões funcionais conseguem com o tratamento é uma melhora dos sintomas motores. O que ainda está sendo explorado sob maior escrutínio é um possível efeito inibitório na progressão da neurodegeneração por meio da neuroplasticidade induzida pelos estímulos elétricos quando aplicados numa fase mais precoce da doença. A avaliação da neuromodulação nesse contexto está sendo contemplada em alguns estudos. O que é possível afirmar no atual momento é que a Estimulação Cerebral Profunda ou qualquer outra modalidade terapêutica não podem curar o Parkinson nem impedir a progressão da doença", afirma a especialista.
Um aparelho eletrônico implantado em um corpo orgânico para o alívio de dores. Será que este vai ser o futuro da medicina?
Antes do desenvolvimento de equipamentos de estimulação e neuromodulação o único jeito de se controlar uma dor refratária era com procedimentos ablativos, ou seja, disrupções calculadas extremamente elegantes e bem feitas no sistema nervoso para evitar esse acúmulo de informação dolorosa que era transmitido para o cérebro. "Hoje, por meio da neuromodulação, competimos com o estímulo patológico por meio desses impulsos elétricos de modo a controlar a sintomatologia da dor, ou seja, não precisamos ter uma intervenção de maneira definitiva que interage no sistema nervoso, mas sim estimula para poder bloquear a informação patológica da dor", destaca a Dra. Alessandra.
Cada vez mais têm pessoas fazendo uso de equipamentos biônicos (processos biológicos alterados ou substituídos por peças eletrônicas). Aquilo que parecia um futuro distante décadas atrás hoje é totalmente comum. Existem implantes na medula para alívio da dor, enfim, o homem se tornou biônico. "Eu mesma tenho pacientes implantados com duas tecnologias, não só casos de Parkinson: Estimulação Cerebral Profunda e Estimulação Medular, desta forma hoje em dia não é mais impensável e nem incomum termos pacientes implantados com equipamentos deste tipo para o controle da dor", finaliza a especialista.
High tech, low life, (alta tecnologia, baixa qualidade de vida), é um lema frequentemente associado ao universo cyberpunk. Na ficção o desenvolvimento da tecnologia é alto e nem por isso a qualidade de vida das pessoas é melhor. Ao menos no mundo real essa máxima não se aplica, já que, na prática clínica, os profissionais usam cada vez mais a tecnologia em prol da vida.
Confira esta e outras reportagens na edição 43 da revista SBN Hoje clicando aqui
Comments